Entrevista de Tristão Fernandes, concedida em 2005

O senhor é conhecido como um excelente e apaixonado contador de casos e a sua vida profissional lhe proporcionou alguns muito bons. diga um de que goste bastante.

TRISTÃO FERNANDES: A história do quase encontro entre o confinado e o ditador é a primeira que me vem à lembrança. Tudo começou num dia de inverno em 1971, à noitinha, quando eu estava passando em frente ao Fórum de Justiça de Ponta Porã, que ficava num sobrado, em cima da delegacia de polícia. Ouvi uns gritos, procurei saber de quem eram, por que estavam gritando etc. Eram três rapazes que estavam presos dentro de uma espécie de caixote, utilizado como cadeia da prisão provisória, nos fundos da delegacia. Eles contaram que eram estudantes de São Paulo e tinham sido presos quando atravessavam com dois quilos de maconha a avenida que separa Ponta Porã da cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, no Paraguai. Alegaram que tinham sido “sorteados” pelos colegas para executar a tarefa e acreditavam que os próprios vendedores da droga haviam avisado a polícia.

Um deles se apresentou como filho de um diretor da Volkswagen e o outro disse ser filho de um diretor da Arno. Eu ofereci ajuda, dizendo que era advogado e eles me pediram que avisasse os pais do ocorrido. Quando cheguei em casa liguei para São Paulo, me identifiquei, falei do rapaz e a pessoa que atendeu me disse que deveria ser algum engano, já que os rapazes estavam em Guarujá, no litoral de São Paulo. Insisti e, quando o diretor da Volkswagen compreendeu que eu estava falando a verdade, disse “amanhã mesmo estaremos aí”. Quando chegaram, em avião fretado, logo me constituíram advogado dos jovens, todos maiores de 18 anos. Não havia juiz em Ponta Porã naquela ocasião e o substituto era o juiz de Bela Vista, a cem quilômetros. Redigi o pedido de soltura, com as provas de que eram estudantes, e fui para lá. A cidade estava cheia de faixas com o texto “Mede-se o progresso do país pelo Presidente Médici”. Ele estava na cidade para a inauguração de uma ponte sobre o Rio Apa, que liga Brasil e Paraguai. Logo concluí que o magistrado só poderia estar na solenidade, dentro do quartel do Exército. Eu não tinha convite, mas fui com os pais dos três rapazes até lá e pedi para falar com o juiz.

O comandante do Regimento de Cavalaria de Bela Vista era o coronel Pedro Doria Passos, casado com Elza Mendes Gonçalves, irmã de Oswaldo Mendes Gonçalves, proprietário da fazenda Carambola, em Ponta Porã. Oswaldo, na juventude, havia estudado em Curitiba e, antes de 31 de março de 1964, era filiado ao PTB. O meu relacionamento com a família vinha de longe. Além disso, como criador de gado, era cliente do Banco do Brasil, onde obtinha empréstimos para a pecuária. Logo ao entrar no quartel, dirigindo-nos ao local onde estavam o presidente Médici, o juiz de direito e as outras autoridades, encontramos Elza. Muito expansiva, ela me abraçou e fez um comentário sobre o espírito democrático do governo, já que ali estava “um comunista” no meio dos militares. Antes que a frase chamasse atenção e para abafar a sua voz, abracei-a, beijei-lhe o rosto e disse baixinho: “Sempre brincalhona, mas essas brincadeiras no momento são perigosas…” Depois, falando normalmente, disse que o irmão Oswaldo e a cunhada, Cecy, mandavam lembranças. O juiz chegou, ouviu os meus argumentos e disse: “Dr. Tristão, conheço bem sua postura profissional. O que o senhor quer que eu faça?”. Em seguida, deferiu os pedidos: expedição de alvará de soltura e agendamento do interrogatório para o período das férias escolares. Faltava, ainda, assinar o alvará de soltura. Para evitar mais transtornos, sugeri que ele outorgasse poderes ao escrivão do cartório para assinar o documento, evitando voltar à cidade. A sugestão foi imediatamente aceita.

A deferência do juiz àquele advogado do interior do Mato Grosso do Sul impressionou os pais dos rapazes. Meses mais tarde, a boa impressão se confirmou, com a absolvição dos estudantes por falta de provas. Afinal, sem o exame pericial da erva apreendida, como seria possível afirmar que se tratava de entorpecente?

Alguma vez o senhor esteve na mira de armas de fogo, no ato de exercer a sua profissão?

TRISTÃO FERNANDES: Várias vezes. Renasci em 11 de junho de 1979, quando atiraram em mim, e lembro uma outra. A agência do BB da cidade de Amambai incumbiu-me de ir ao quartel do 17ª Regimento de Cavalaria, a uns doze quilômetros do Centro. Precisava cobrar de um sargento um cheque que havia sacado na boca do caixa, com uma funcionária nova, quando sua conta já havia sido encerrada pela devolução de cheques sem fundo. Cheguei, me identifiquei no portão onde fica a sentinela, com uma saleta. Fui autorizado a entrar, andei uns 200 metros e fui recebido pelo subcomandante, que determinou a presença do tal sargento. Eu fiquei só com ele e disse que teria que ir à gerência cobrir o saque indevido, sob pena de ser acionado criminalmente, o que iria atrapalhar a carreira no Exército, com possibilidade até de exclusão. Ele disse que iria repor e saí. Após passar o portão, na saída, ouvi o barulho de engatilhar uma arma e, ao me virar, o soldado sentinela estava apontando um fuzil em minha direção. Me apavorei, gritando “O que é isso? Está ficando doido? Sou advogado do Banco do Brasil!” Foram segundos e o soldado baixou a arma. Fiquei revoltado, peguei a Rural Willys, onde estava um amigo esperando, Heitor Antonio Marques, fui correndo para a agência, chamei o gerente e o contador, regressei com todos ao 17º Regimento e exigi falar com o comandante, que nos recebeu. Relatei tudo e abriram o IPM. Conclusão: uns oito meses depois, o soldado fora punido porque não reagira às supostas ofensas daquele advogado comunista, já que representava o comandante do regimento, o comandante da região, o ministro da guerra e o presidente da República!

O senhor tem histórias de júri para contar?

TRISTÃO FERNANDES: Olha, fiz mais de 40 júris no Mato Grosso do Sul. Os casos que marcam, para o criminalista, são os diferentes. O criminalista consegue ver beleza em certas tragédias, não pela violência, mas pelo que apresentam sobre a complexidade do ser humano. Destes casos, três ficaram fortes na memória.

Vamos ao primeiro?

TRISTÃO FERNANDES: O proprietário de uma fazenda de porte médio, ao regressar do campo, aonde havia ido inspecionar as cercas da fazenda, olhou para dentro do seu quarto por uma fresta da parede de madeira e viu sua mulher mantendo relações com o cão de estimação da família, chamado Sereno. Refeito do choque, passou a manter o cão e a mulher sob observação. A cena se repetiu no mês seguinte e o marido, em conversa com a mulher, argumentou que ela estava doente e por isso deveria ir para a casa dos pais fazer um tratamento. A mulher afirmou, na presença de um tio, que preferia ficar com Sereno mas, assim mesmo, o marido a levou para a casa dos pais dela, mantendo a filha de seis anos sob sua guarda e de sua mãe.

Certo dia, o marido, que estava em Campo Grande, chegou em casa aproximadamente à meia-noite e não encontrou a filha: a mãe tinha ido buscá-la e a avó, com pena, deixou que a levasse. O marido tomou um táxi na mesma hora e dirigiu-se à cidade onde a mulher se encontrava, chegando ao amanhecer. Ele anunciou que estava ali para buscar a filha logo ao entrar no quintal da casa dos sogros. A mulher correu para o interior da casa e voltou acompanhada de um concunhado, armado com um revólver 38. O marido, então, atirou no concunhado, que caiu fulminado no quintal. Em seguida, entrou na casa, matou também a mulher com dois tiros e fugiu no táxi com a menina. O morto era aviador, e membros do aeroclube local saíram de avião em perseguição ao táxi, que foi detido ao passar pela cidade de Antônio João, MS. O marido foi conduzido ao local do crime, onde se deu a prisão em flagrante.

O julgamento só ocorreu um ano e oito meses depois, atraindo uma verdadeira multidão. No júri contamos esta história: o acusado havia pegado a mulher em flagrante delito, mantendo relações sexuais com o cão e, mesmo na hora em que a mulher gritou que preferia ficar com o cachorro, agiu civilizadamente, o que indicava que só o descontrole emocional momentâneo do réu poderia tê-lo levado a assassinar a mulher. Invocamos a tese de homicídio privilegiado, que é aquele cometido logo após injusta provocação da vítima. Quanto à morte do aviador, defendi que seria legítima defesa putativa, aquela em que o agente acredita que o outro iria matá-lo: o concunhado saiu correndo de dentro da casa com o revólver em punho certamente para matar o réu. Sugeri ao júri que a filha do casal ficasse sob os cuidados dos avós maternos, que emocionalmente poderiam substituir a filha assassinada na tragédia. Mesmo com o forte clamor popular, o acusado foi absolvido da morte do aviador por sete a zero e condenado a um ano e oito meses de prisão pela morte da mulher, porque os jurados concluíram que o crime foi cometido sob violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima. Como já estava preso há um ano e oito meses, o réu recebeu na hora o alvará de soltura.

Agora, o segundo caso?

TRISTÃO FERNANDES: Um comerciante de armas e munições, casado, pai de duas filhas casadas com oficiais do Exército, foi pego em flagrante enquanto mantinha relações homossexuais em sua residência, num domingo, por um parente que tinha dificuldade de locomoção e era semigago. Imagine, naquele tempo, a vergonha e a desonra deste homem, diante dos preconceitos da cidade. O tal parente começou, então, a exigir dinheiro, ameaçando espalhar o fato.

A loja de armas e munições era na parte da frente da casa, com comunicação interna para a residência. A entrada social da residência era feita pelo lado direito, por uma calçada alta que ia até o final do terreno, onde estava instalado o escritório em que o parente surpreendeu o cliente na relação sexual.

Segundo a acusação, o cliente, para escapar da chantagem, armou uma cilada para o parente. Este morava depois da casa onde estava instalada a loja e, para alcançar a entrada social, tinha que passar pela frente do estabelecimento. Uma noite, o cliente deixou a porta da casa de comércio ligeiramente aberta, com a trava apenas encostada do lado de dentro. O parente chantagista, segundo a acusação, dormia pouco e, quando tinha fome, dirigia-se muito cedo para a casa do acusado. Chegando lá, aproximadamente às cinco horas da manhã, empurrou a porta, derrubou a trava e penetrou no interior da casa de comércio, onde levou cinco tiros, indo cair na calçada. Os vizinhos, ouvidos no processo, afirmaram que haviam sido acordados com um insistente latido de cão e vários tiros e que, em seguida, ouviram o funcionamento do motor de um automóvel, um portão sendo aberto e o veículo partindo. Após esses acontecimentos, o acusado escondeu-se em sua fazenda no Paraguai.

Quando assumi a defesa, a opinião pública era visceralmente contra o acusado. Feita a denúncia, a defesa teve o cuidado de trazer para os autos os boletins de registro atmosférico do dia anterior ao crime e do próprio dia do crime, feitos pelo aeroporto local, que registravam fog intenso e teto zero; a notícia de que naquela área só havia cachorro na casa do acusado e também pareceres de veterinários atestando que, se o cão latiu insistentemente, decerto não conhecia o cheiro da pessoa que se aproximava da casa. Argumentei que a neblina, que impedia o reconhecimento da vítima, e o latido incessante do cachorro levaram o acusado a pensar que se tratava de um ladrão forçando a porta da loja, para entrar na sua residência.

Estava tudo calmo, parecia que o assunto estava esquecido e, quinze dias antes da data do julgamento, o cliente foi apresentado e preso. A opinião geral na cidade, dos jornais etc. era de que “o monstro” deveria ser condenado a 30 anos de prisão. A tese de legítima defesa da propriedade e de legítima defesa putativa levou o júri a absolvê-lo por sete a zero.

E o terceiro caso…

TRISTÃO FERNANDES: Lá vai. Dois irmãos fazendeiros herdaram do pai uma fazenda e, na partilha das terras e do gado, a sede do imóvel ficou no quinhão do mais novo. O outro filho, em represália, construiu pocilgas na divisa das terras próxima à sede da fazenda. A criação de porcos frequentemente rompia a cerca ou era solta, causando discussões entre os irmãos. O irmão que ficou com a sede reclamava do cheiro das pocilgas e das invasões dos suínos. As discussões entre os dois eram constantes.

Um dia, quando passava a cavalo por uma estrada de terra, o irmão mais novo, acompanhado de um peão, viu de longe a carroça do irmão mais velho vindo em sua direção. Para evitar o encontro, saiu da estrada e foi para o campo, seguindo por uma antiga trilha.

O irmão mais velho percebeu a manobra e, vendo que o mais novo havia saído da estrada para evitar o encontro, resolveu também entrar na antiga trilha. O encontro dos dois foi inevitável e a discussão também. O irmão mais velho atirou da carroça no mais novo, provocando a queda do cavalo deste sobre a perna do cavaleiro. Vendo o irmão mais novo imobilizado, o outro desceu da carroça com uma faca, para terminar o serviço, quando o peão que acompanhava o mais novo sacou do revólver e, com dois tiros, matou o agressor.

O Ministério Público denunciou o peão e o irmão mais novo como autores do homicídio, incursos nas penas do artigo 121 do Código Penal. Como não foram presos em flagrante, ambos responderam ao processo em liberdade.

Contratado para defendê-los, juntei aos autos as seguintes provas: fotos da sede da fazenda e das instalações da criação de suínos; mapa dos imóveis rurais; cópias da partilha dos bens e do inventário; mapa e desenho do local dos acontecimentos, com a estrada e a antiga trilha onde se deu o encontro; fotografias da estrada, da trilha e do local dos acontecimentos.

O irmão mais novo negou qualquer participação no crime. O peão assumiu a autoria, negou qualquer ajuda ou participação de terceiros e afirmou que atirou porque estava certo de que o irmão mais velho iria “sangrar” o que havia caído e estava imobilizado embaixo do cavalo.

O juiz pronunciou os acusados e marcou o julgamento. O peão apresentou-se para ser julgado na data marcada e o fazendeiro, que estava doente, juntou atestado médico para justificar sua ausência. O peão foi absolvido com base na tese da legítima defesa putativa de terceiro. Julgado em outra data, o segundo acusado foi absolvido pela comprovação da tese da negativa de autoria.

Algum personagem em especial ficou na memória daqueles tempos?

TRISTÃO FERNANDES: Um cliente entregou uma nota promissória emitida pelo açougueiro, que não a pagara. Como a cidade era pequena, fui pessoalmente cobrar a dívida e encontrei o açougueiro cortando carne com uma faca enorme. Após alguma animosidade, disse que iria ao meu escritório pagar. Anos depois, este açougueiro ingressou no escritório, acusado de vários homicídios. Era um verdadeiro serial killer e, no meio da entrevista, disse: “Doutor Tristão, não sei como não lhe matei aquele dia. Acho que gostei do senhor.”

O senhor se lembra de algum caso especialmente movimentado, de ação e suspense?

TRISTÃO FERNANDES: Esta história começa no Rio e termina em Mato Grosso do Sul, passando pelo Paraguai. Uma das minhas cunhadas, que morava com o marido e o filho de cinco anos, telefonou aos meus filhos que moravam no mesmo bairro, Copacabana. Ela pediu ajuda, trancada no quarto do casal depois de ter sido agredida fisicamente pelo marido. Os três irmãos chegaram rápido e tiveram que imobilizar o tio, para que a tia e a criança pudessem sair do apartamento. Mãe e filho no dia seguinte foram para Ponta Porã, onde ficaram abrigados na minha casa.

Menos de uma semana depois, quando passeava de carro com Zulka e o menino, o carro foi “fechado” por dois jipes do Exército. Os oficiais desceram e indagaram se aquela criança era o tal menino, meu sobrinho. Havia uma acusação de sequestro político com pedido de resgate para a devolução e, ao obterem a confirmação, os militares me intimaram a comparecer ao quartel e me informaram que o pai do menino estava chegando de trem à cidade para buscá-lo. Com muito jeito e muita conversa, e todos sabiam que eu era advogado do Banco do Brasil, consegui convencer os oficiais a me acompanharem até minha casa, para encontrarem a mãe do menino.

Eu já tinha um plano para ganhar tempo e evitar que a minha cunhada fosse obrigada a entregar o filho. Após estacionar o carro na garagem, entrei na casa e a orientei a fugir com o menino pelos fundos, em direção ao Paraguai (a fronteira ficava a menos de 100 metros do quintal da residência), onde ela deveria aguardar Zulka, na loja China. Em seguida, liguei para o juiz, abri a porta social e convidei os militares a entrar, comunicando que não poderia entregar a criança, que estava na posse da mãe, exceto mediante ordem judicial de um juiz. Os oficiais, contrariados mas diante da presença do juiz na minha residência, retornaram ao quartel.

No Paraguai, a mãe e o menino ficaram hospedados na fazenda da mulher do cônsul do Brasil, Dinorah Pinto Costa. O passo seguinte foi pedir a posse e guarda da criança. O juiz marcou audiência e, na data marcada, a mãe e o filho voltaram do Paraguai. O pai, que era ligado ao SNI, queria forçar a mulher a voltar para ele, mas o juiz não se intimidou e deu a guarda à mãe.

O senhor defendeu presos políticos?

TRISTÃO FERNANDES: Quando me formei no Paraná, eu estava no movimento político, era presidente da federação dos bancários. Naqueles movimentos antes do golpe de 64 eu atuei como advogado e sindicalista, quando havia prisões. A minha ficha na presidência da República diz assim: “Em 1966, juntamente com outros advogados, intercedeu pelas pessoas, maioria estudantes, que haviam sido detidas pelo DOPS/PR por picharem ruas do Centro de Curitiba com frases alusivas ao governo cubano.” É um erro do serviço secreto da presidência, que, por outro lado, registrou minha atuação até 1987, quando anotou que fui “um dos presentes à reunião de fundação da subseção do Rio de Janeiro da “Associação Americana de Juristas”, realizada na sede da OAB/RJ, em dois de dezembro de 87.” Incrível, até na OAB/RJ, em pleno regime democrático, me vigiavam. Mas eu fui muito mais preso político do que advogado de preso político. Estava impedido para a defesa política, poderia até prejudicar meus companheiros.